Enterrados no Jardim

By: Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
  • Summary

  • Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho à conversa, leve ou mais pesarosamente, fundidos na bruma da época, dançando com fantasmas e aparições no nevoeiro sem fim que nos cerca, tentando caçar essas ideias brilhantes que cintilam no escuro, ou descobrir a origem do odor a cadáver adiado, aquela tensão que subtilmente conduz ao silêncio, a censura que persiste neste ambiente que, afinal, continua a sua experiência para instilar em nós o medo puro. Vamos desenterrar, perfumar e puxar para o baile os nossos amigos enterrados no jardim, e deixar as covas abertas para empurrar lá para dentro aqueles que só aí andam a causar pavor e fazer da vida uma austera, apagada e vil tristeza.
    © 2024 Enterrados no Jardim
    Show More Show Less
Episodes
  • Espantar os limites da visão. Uma conversa com Carlos Vidal
    Feb 21 2025
    Talvez o homem seja esse animal trágico condenado a gerar os predadores que acabarão por lhe dar caça e levá-lo a uma submissão permanente ou, até, à extinção. Mas antes de dar forma a uma razão exterior, fomo-nos desprotegendo, expandindo o elemento sacrificial e degradante dos mais fortes sobre os mais fracos, até nos condicionarmos a uma existência em que cada homem é o seu próprio inimigo, deixando-se inocular de um vírus que o destrói a partir de dentro. Pensemos como vivemos presos às imagens, dominados e sem nos podermos libertar do fascínio que estas exercem sobre nós, de tal modo que sacrificámos a nossa linguagem a elas. Num excerto da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, pode ler-se isto: “Lembra-te amiúde do que diz o Eclesiastes: ‘o olho não se farta de ver nem o ouvido de ouvir’. Procura, pois, desprender o teu coração das coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis, porque os olhos que se entregam à sensualidade mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” Viemos encerrados, manietados por fantasias cada vez mais espúrias, delirando à beira da inconsciência, e até de forma cada vez mais ignara, sem nem nos sujeitarmos à inspiração e aos desafios que os antigos colocavam tentando alcançar e preencher o último horizonte, essa “orla mítica do mundo”. Cada vez mais inábeis na hora de nos lançarmos naquela exploração que só uma imaginação treinada para tarefas de batedora dos mais ermos e improváveis, ficámos sujeitos a essa forma de câmbio da realidade pelas imagens, incapazes de recuperar uma experiência da realidade que produza um verdadeiro abalo dos sentidos e da inteligência. Num dos seus ensaios, Wagner lembrava como “nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos. Os Gregos iam buscar os materiais da sua arte aos produtos mais elevados da cultura comunitária. (…) O embotamento típico da educação contemporânea, na maior parte dos casos meramente orientada na perspectiva do lucro industrial, dá-nos uma satisfação idiota e simultaneamente orgulhosa da nossa inaptidão artística e ensina-nos a procurar os objectos da experiência estética fora de nós, aproximadamente com o mesmo tipo de desejo com que o depravado procura junto de uma prostituta um fugaz prazer amoroso.” Nos nossos dias, fomos abdicando da dificuldade e dos processos de enamoramento e sedução, desistindo desses aspectos de recriação a partir dos quais se funda uma identidade autónoma, sempre em relação com o outro, e traímos a busca do prazer por esse substituto mais certo que é a descarga de adrenalina. Formamo-nos como seres ansiosos, capturados por uma condição generalizada de anestesia na sequência de uma tensão contínua, e o remédio para todas as nossas crises passa por aumentar a dose desta realidade de substituição, acelerar o ritmo, intensificar os estímulos e o efeito de estimulação do sistema nervoso. Estamos sempre ligados, mas num presente que se arreda da vida, consumindo a própria ausência, sequências de imagens fugitivas, um mundo impossível de tocar ou saborear, e nos raros momentos em que nos afastamos, entramos numa espécie de ressaca que torna a realidade que não desapareceu nem foi devastada entretanto ainda mais desagradável para esses sentidos atrofiados pelos fluxos de neuro-estimulação. Uma verdadeira revolução hoje teria de começar por um corte geral dos sistemas de enervação, de modo a que a emoção de sentir um corpo próximo pudesse fazer-nos superar essas inibições que estão a gerar indivíduos cada vez mais isolados e indiferentes. Um dos mistérios mais cativantes do conhecimento que fazemos da realidade, e de que todos os grandes poetas em algum momento se dão conta, foi expresso por Heidegger quando notou que, quanto mais conhecidas se lhes tornam as coisas cognoscíveis, mais estranhas são e permanecem para eles. É como se o mundo preservasse o seu fascínio não admitindo a posse, mas instigando um elemento de errância, de busca incessante. A certa altura, as letras do mundo tornam-se etéreas, essas serifas de mármore, sólidas hastes erguidas nas rochas e postas nos ápices, e que ascendem como as colunas na história… Assim, da mesma forma como nos debruçamos tentando traduzir relevos antigos, também a carne pode beneficiar da mesma atenção minuciosa, fazendo de nós seres que empurram e se descobrem e transformam por meio de uma afeição delirante. Neste episódio, vamo-nos deter sobre as transformações que se têm operado ao nível da biopolítica e que têm constituído a mais severa ameaça que as democracias modernas alguma vez enfrentaram. Seguindo o diagnóstico da mutação antropológica que se tem operado a nível cognitivo, vamos procurar perceber como as imagens são as armas às quais temos vindo a ...
    Show More Show Less
    3 hrs and 10 mins
  • Mapa para não enlouquecer de vez. Uma conversa com Serena Cacchioli
    Feb 15 2025
    Um tipo passeia-se entre as ilhas e as estantes de uma livraria, abre os livros colocados em destaque, e nem a sensação tem de estar à janela, seguindo figuras em ponto pequeno lá em baixo, muito menos vultos que se deslocam noutra dimensão, antes parece que só vê cortinados. Há quem se delicie com os padrões, os bordados, como há quem prefira olhar para frutos num quadro, em vez de os ter numa cesta, à distância de impulso. Às vezes, ao fim de umas frases, envelhecemos, a língua fica como um peso morto, incapaz de tocar com a ponta o céu da boca. Não há tédio como aquele que se sente perante um livro invariável, incapaz de deslocar sequer ligeiramente a nossa perspectiva. Ainda somos capazes de perdoar as noções disparatadas, aqueles humores absurdos, mas que um texto seja de tal modo insípido que não nos provoque outra sensação além de cansaço, isso, sim, nos parece imperdoável. Quando abrimos um livro, move-nos sem que o saibamos a imortalidade, e não menos fundamentalmente a insatisfação, essa busca de um sentido inesperado, capaz de mergulhar em aspectos raros da existência, trabalhando nalguma explicação engenhosa. O que menos nos apetece é sermos envolvidos numa toada mais ou menos arfante e indiferencias, mas um percurso que nunca faríamos por nós mesmos, precipitados por uma inteligência que nos faz mergulhar numa outra substância dos dias, subitamente intensificada, dando-nos acesso a elementos de ligação que, sem o sabermos, já existiam em nós próprios, mas não por uma ordem que nos permitisse exprimi-los. Lemos para nos distanciarmos de nós mesmos, para superarmos os vícios e as rotinas do nosso juízo, procurando aprofundar as grandes articulações do mundo. Não é bem a realidade que nos maça, mas esta habituação às nossas ideias, o que nos empurra para uma certa indiferença, cadências desgastantes. Estavas a meio disto, de nada, de ti próprio, quando alguém te ligou e quis saber como andas. Não havia nada que pudesses dizer. Às vezes há diálogos que se repetem uma e outra vez pelos séculos. Soluçaste: "O ócio é fatigante." E do outro lado, ouviste uma frase que em tempos copiaste para um caderno: "Isso acontece, como bem sabes, porque estando os demais ocupados, nos falta companhia; mas se todos fossem ociosos, nunca nos aborreceríamos; passaríamos o tempo a entreter-nos uns aos outros." Cada um deveria ser obrigado a sair de casa com duas ou três páginas de anotações e citações para infiltrar ao logo do dia nas conversas, mesmo que desse a sensação de estarmos a jogar à batalha naval, tentando afundar a frota uns dos outros. Se não for assim, nos dias que correm, não nos deparamos com desafios animadores nem imprevistos de espécie nenhuma. Esta falta de um sentido profundo contaminou tudo, corroeu os fundamentos, deixou o mundo da experiência exposto na sua fragilidade, deslassado, fragmentado. Não demorará muito para que metade da humanidade esteja rendida aos sistemas de inteligência artificial, e estes é que serão transplantados para esses corpos incapazes por si mesmos de sustentar uma conversa que cative, seduza ou faça estremecer seja quem for. Que competição poderemos oferecer a algoritmos afinados a cada interacção para estender ao infinito o loop de informações, sobretudo se as máquinas forem capazes de simular esses sinais de afeição que nós próprios já nem praticamos. Fala-se de uma praga de narcisistas, mas somos mais como seres que perderam o seu reflexo, que não mais se dedicaram a projecções e reinvençõe de si mesmos. Parecemos contentes por ser exactamente como somos. Talvez não seja assim tão mau se as máquinas atravessarem esta carne, desde que possam restituir-nos essa dimensão fantasiosa dos reflexos que trocávamos, a trama de engates. Perseguidos até à extinção, nem já cupidos se avistam, e as até as flores se tornaram uma forma de insulto, ou, quando em grande número, formando coroas, uma ameaça de morte. Alguns pesquisam e encomendam pacotes de sonhos no Google. Fode-se mais por recomendação dos cardiologistas, e para preservar velhas tradições, ou apenas para benefício das máquinas, uma vez que toda a perversão e os vícios voyeuristas ficaram do lado delas. A nós basta-nos a estimulação por impulsos eléctricos. Trocámos de lugar. Devoram a nossa literatura, os filmes, a música, esforçam os seus circuitos para produzirem ecos capazes de abalar os mortos. São elas que visitam os cemitérios, e choram pelos últimos que foram capazes de algum registo irrepetível. Jánós, não passamos de sequelas, e a tensão mortal continua a dissipar-se. Este episódio ainda é do tempo em que éramos estranhos para nós mesmos, em que tocávamos ao nosso próprio ombro, e repetíamos inseguramento os nossos próprios nomes. A Serena Cacchioli, tradutora para a gaveta, autora de um alfabeto de distâncias cosidas por sussurros, abdicou da noite de ...
    Show More Show Less
    3 hrs and 47 mins
  • Encontrar a nossa partitura física. Uma conversa com Cátia Terrinca
    Feb 7 2025
    Ainda que nos tenhamos tornado imensamente hábeis na hora de produzir diagnósticos da nossa época, aquilo que virá, vem e consegue sempre atingir-nos como um atropelo. O futuro surge sempre como um intruso, que abala as previsões, chega a escarnecer delas. Talvez isso funde o optimismo daqueles que vivem para o futuro como para uma vingança, mesmo que esta não possa ser encenada a seu favor. Pior seria se se acomodassem às coisas tal qual estas estão. Certa vez, enfrentando uma barragem de recriminações da parte da crítica soviética, avessa a qualquer esboço de lirismo e subjectividade, Maiakóvski defendeu-se com estas palavras: "Aqui se diz que no meu poema não se deve colher uma mensagem geral. Em primeiro lugar, li apenas trechos, mas já nesses trechos citados, há um único eixo importante: o viver quotidiano. Aquele viver em que nada muda, aquele viver que se manifesta hoje como o nosso pior inimigo e que faz de nós filisteus." Parecem ser cada vez mais aqueles que se entregam a uma relação fria, bastante cínica, com as noções, as ideias, as leituras que vão fazendo, a todo o momento servem-se de razões contra a acção, formulam sempre os seus conhecimentos de forma a conjugar-se com a rede de determinismos ou conformismos que vão erodindo o campo de possibilidades. Têm demasiada pressa em concluir que não há volta a dar, não há saída. O jornalista e ensaísta francês Vicent Cocquebert identifica uma pulsão difusa que se operou com a omnipresença dos meios digitais para uma forma de narcisismo à medida que, da cultura ao consumo, passando pelos lazeres e mesmo pelas relações sociais, nos transformámos em "grandes organizadores dos nossos mundinhos tecno-domésticos". "Estamos agora encolhidos dentro de nós mesmos e em luta permanente com um mundo que já não queremos mudar colectivamente, mas submeter à nossa vontade", diz-nos ele. "É como se, além de termos integrado as lógicas capitalistas da escolha e da rentabilidade em diversos domínios das nossas existências (sentimental, profissional, política), tivéssemos agora adoptado a postura do 'consumidor-senhor' dos nossos (minúsculos) reinos, nos quais o outro, quando não corresponde inteiramente às nossas expectativas, se torna inevitavelmente um obstáculo." Cocquebert traça aqui um regime de exclusão, a emergência de uma cultura do casulo, a qual tende a fazer-nos ver o exterior como exageradamente hostil, em vez de criar uma ligação dinâmica entre o indivíduo e a sociedade. Cada vez mais o mundo precisa pedir-nos licença, ficando sujeito a um intervalo cada vez mais dilatado, a largos períodos de quarentena, sendo submetido a uma série de actos de inspecção antes que lhe seja admitida qualquer interjeição. Ora, isto é precisamente o contrário da atitude de disponibilidade dos exploradores, daqueles que se alimentam da carne do acaso, desse tipo de criadores que gostam de sujeitar a imaginação às grandes derivas, e se mostram aptos a levar em conta a quantidade fantaástica de sons e formas que a cada passo das nossas vidas podemos captar. Nesse sentido, os poetas são menos os inventores do que espíritos que se acendem pela possibilidade de combinar e recombinar elementos e detalhes, todos os restos, ir investigar rastos, enxames, zumbidos... O motivo porque nos sentimos a desmoronar, incapazes de ser coerentes com nós próprios, de ligar por um fio os nossos gestos, tudo isso que leva a que nos sintamos dominados por uma vontade que nos estranha, aí surge uma patologia própria deste tempo: a sensação dolorosa de que as coisas nos fogem entre as mãos, a sensação de esmagamento provocada pela velocidade, pelo ruído, pela violência, a sensação de ansiedade, pânico, caos mental. Franco "Bifo" Berardi assinala como tudo isto provoca em nós uma crise dolorosa, uma série de sintomas que apontam para essa necessidade de procurar uma ordem para o mundo, um incentivo para construir uma ponte sobre o abismo da entropia, uma ponte entre várias mentes singulares. "É através desta conjugação que o sentido do mundo se vê evocado e posto em prática: semiose partilhada, respiração em consonância." Neste episódio, o guião desfez-se-nos nas mãos, mas demorámo-nos sobre a fragilidade que se sente hoje pela falta de coerência do mundo, ou pelo menos do esforço comum de projecção de um sentido. Cátia Terrinca, que tem desenvolvido um percurso ligado ao teatro e à performance, reivindica para si a condição de intérprete, não o mero abandono a um texto dramatúrgico, mas a sua interrogação, e veio falar connosco e assinalar o efeito da repetição para denunciar o tempo, como a experiência nasce de um cerco que se faz valer menos do que julgamos saber do que dos elementos de resistência que caracterizam um longo processo de digestão. Aí há margem não apenas para a intuição de uma infinitude de possibilidades, mas também para essa deriva que ...
    Show More Show Less
    2 hrs and 35 mins

What listeners say about Enterrados no Jardim

Average Customer Ratings

Reviews - Please select the tabs below to change the source of reviews.

In the spirit of reconciliation, Audible acknowledges the Traditional Custodians of country throughout Australia and their connections to land, sea and community. We pay our respect to their elders past and present and extend that respect to all Aboriginal and Torres Strait Islander peoples today.